Um sorriso, abraço ou uma saudação do outro lado da rua. Gestos banais que dizem muito. Com o drible acontece algo parecido. No curto intervalo de uma finta pode-se reconhecer um povo. Suas faces, tradições, trejeitos e até mesmo seu humor afiado. Ninguém. Absolutamente ninguém traduziu tão bem nosso povo com um gesto tão cotidiano como um drible como Manuel Francisco dos Santos, o "Mané".
Veja bem, me refiro a Garrincha. O gênio de pernas tortas que conseguia condensar no vão de um drible os tambores ancestrais, a ambição portuguesa, a ingenuidade típica dos índios, festejos, ritos e riso. Sim, riso fácil e juvenil que inunda nossa terra em pleno Carnaval. Mané foi um jogador de futebol, mas também era o 'povo' como nenhum craque brasileiro ousou ser.
Não por acaso sua figura causava tanto fascínio nas multidões. O futebol de Garrincha era pura essência do jogo de bola. Objetivo e irreverente, Eficaz e despojado. Tudo isso feito de maneira harmoniosa com uma candura que nunca foi repetida. Sim... Candura é uma boa definição para a futebol inocente jogado por Mané.
E se complexo era o rigor estilístico com que executava seus dribles, fora de campo Garrincha era um homem simples. Um 'passarinho' como certa vez escreveu Armando Nogueira.
Em seu auge técnico e fisíco conheceu Elza Soares. Foi na Copa de 1962. Mais conhecida como a Copa de Garrincha. Quando na ausência de Pelé coube a Mané comandar o time brasileiro na conquista do bi.
Os 50 anos da conquista daquela Copa foram completados recentemente. Elza foi convidada a relembrar de sua vida ao lado de Mané. "Eu lembro do Mané com febre antes da final. Lembro dele me dizendo que ganharia a Copa para mim. Foi o Mané que deu aquela Copa para o Brasil, e pouca gente lembra disso hoje. Para mim, eram 11 Manés dentro de campo. Eu lembro da pureza e da inocência dele: do quanto ele foi ingênuo, do quanto ele podia nos dar e do quanto ele nos deu", disse a cantora.
Garrincha ganhou a Copa de 1962. Pode ser apontado como grande protagonista de um dos mais gloriosos capítulos da história da seleção brasileira. A conquista é representada por aquela segunda estrela estampada na camisa canarinho. No entanto, aquele Mundial é muito mais do que um detalhe bordado. É a Copa de Garrincha e de Elza.
Só que sua história não se resumiu somente a jogadas espetaculares e vitórias gloriosas dentro de campo. Gênio nas quatro linhas, Mané deu muitas caneladas em sua vida pessoal. Um marcador invísivel, silencioso e traiçoeiro conseguiu fazer estrago no craque de pernas tortas. Garrincha era um alcoolista. E a bebida foi sua ruína.
Sua decadência foi lenta e penosa. Além do Botafogo, Garrincha ainda jogou por muitos times como Corinthians, Vasco, Flamengo e tantos outros. Porém é possível afirmar que apenas o torcedor do Glorioso teve o prazer de ver o craque em sua plenitude.
O vício o fez perder a paz, dinheiro e morrer precocemente. Mais do que isso, a bebida corroeu seu relacionamento com Elza Soares. Um casal que encarnou como poucos elementos da mais pura tragédia. Romeu e Julieta dos Trópicos. O álcool foi o veneno que colocou fim na linda e triste história dos dois.
Como todo grande personagem, Garrincha foi objeto de crônicas, poema de Carlos Drumond de Andrade e alvo de uma biografia primorosa do craque Ruy Castro. Me pergunto se a história de Garrincha teria tão triste fim se ele vivesse longe do futebol. Uma vida tranquila de operário como a que parecia estar destinado.
Impossível saber. Assim como é improvável imaginar o futebol brasileiro sem Garrincha. A identidade de nossa escola futebolística passa obrigatoriamente pelo estilo do eterno ídolo do Botafogo. Não seriamos os mesmos.
Ainda que Garrincha tenha sido um cometa cujo brilho foi único. Muitos vestígios do seu mágico futebol ainda estão presentes por aí. Poeira cósmica que habita os gramados e faz muita gente feliz.